Dora Andrade: em permanente campanha para transformar vidas através da arte

Em 1991, armada com uma sapatilha de ponta e poder de mobilização, a coreógrafa Dora Andrade começou uma guerra para salvar crianças da miséria por meio da arte com a Escola de Dança e Integração Social para Crianças e Adolescentes (Edisca). Com muitas batalhas vencidas no caminho, Dora lança o 12º balé da história da instituição, Estrelário, e busca novas alianças para enfrentar outra batalha: a dificuldade de financiamento do terceiro setor.

A estreia do novo espetáculo – coreografado em parceria com seu irmão, Gilano Andrade – aborda a relação que os humanos estabelecem com o sagrado individualmente e remete a valores como solidariedade e compreensão do outro. Além disso, chama atenção para a necessidade de formar novas parcerias para manter as ações e estruturar ações que gerem recurso próprio e dêem “dignidade institucional” para a Edisca, como deseja a sua fundadora.

Oferecendo uma formação múltipla, focada no desenvolvimento humano a partir da educação e da dança, além de ações constantes para envolver as famílias das crianças atendidas, a Edisca já transformou a vida de mais de 2,4 mil famílias de bairros carentes de Fortaleza, como Jangurussu, Bom Jardim, Barra do Ceará e muitos outros. Os 12 balés criados até o momento buscam, sem deixar de lado o apuro estético, provocar reflexões acerca das nossas mazelas sociais, e deram fama à Edisca no Brasil e no exterior.

Seus programas e transparência na aplicação dos recursos captados renderam reconhecimentos como a Ordem do Mérito Cultural, a maior comenda do setor da cultura do Brasil; o prêmio ODM, da Presidência da República; e o prêmio do Banco de Tecnologias Sociais do Banco do Brasil, além de parcerias com o Instituto Ayrton Senna e Unicef.

Estrelário fecha uma trilogia que fala sobre espiritualidade e sobre o aspecto transcendente de cada um. Como se deu a concepção dessa trilogia?

Eu tento falar sobre o sagrado. O Estrelário fecha uma trilogia que começou com o Sagrada, que tinha uma puxada ecológica, pela sacralidade de todas as formas de vida do planeta. De certa forma era uma denúncia, um alerta para pensarmos um pouco sobre o que estamos fazendo com o meio ambiente, com as futuras gerações. Depois veio o Religare, onde a gente falou de diversas culturas e seus caminhos para se chegar ao divino. No Estrelário a gente fala do sagrado que existe em cada um de nós. Existe uma fagulha do divino em cada um de nós, não apenas nas pessoas especiais que realizaram grandes feitos. O sagrado está nas pessoas comuns, e é isso que eu quero que os meninos da Edisca saibam.

A trilogia fala sobre o sagrado sob uma perspectiva mais espiritual do que religiosa?

Não são balés religiosos, a Edisca é laica e eu, particularmente, não tenho religião. Mas a dimensão da transcendência, a dimensão sagrada, é inerente ao humano. Toda vez que eu vejo um avião decolar, ou quando leio um bom livro, ou uma ótima música, fica pra mim tão claro o divino que existe no humano.

Os balés da Edisca têm por característica o apuro estético aliado à denúncia de problemas sociais, geralmente vividos pelos próprios bailarinos, oriundos de regiões carentes. 

Eu nunca fiz um espetáculo para mero entretenimento. Todos os que eu fiz e possivelmente farei no futuro, são espetáculos que têm múltiplas intencionalidades. E uma delas é tornar visível o capital humano, a tremenda riqueza que existe nos pobres. Acho que nós já fizemos inúmeras perversidades com os mais pobres e acho que a pior é passar a ver essas meninas e meninos como um problema, como ameaça à sociedade. É um absurdo que se diga, por exemplo, que o problema da educação são os meninos da periferia, que o controle de natalidade vai solucionar questões. É de uma ignorância absurda!

Você sempre busca o componente político no seu fazer artístico? 

Eu adoro pensar em mim enquanto artista, as pessoas me vêem como “ongueira”, como uma boa captadora, mas eu gosto de me ver como artista, e acho que para um artista é fundamental discutir as principais questões que lhe são dadas no viver. E o momento que me foi dado viver é controverso, extremamente desafiador. Então, eu não conseguiria fazer um espetáculo onde essas questões não viessem à tona. A minha vontade é que os espetáculos da Edisca sirvam para afetar o espectador, não só pela estética, pela beleza, mas que toquem o coração, a alma, o espírito, a consciência, que as pessoas saiam dali minimamente diferentes, com propensão a ver as realidades que estão à volta.

Para você, é isso que falta na atualidade? Enxergar as outras realidades?

Não sei, ando um tanto perplexa com esse momento. Nos últimos meses, quando você pensa que não tem mais nada de absurdo, aparece um novo escândalo e falas completamente esquisitas. É muito preocupante. Eu penso que a arte tem uma função maior que a estética, se não de denúncia, pelo menos de provocar reflexão, principalmente porque é impossível, conhecendo a realidade dos nossos alunos e o trabalho da Edisca, não fazer conexão com o que a gente está tentando falar.

EU ME SINTO EM CAMPANHA HÁ 28 ANOS

A Edisca realiza um trabalho transdisciplinar em educação, arte e desenvolvimento humano que atravessa as crianças atendidas e suas famílias e é reconhecido internacionalmente. Mesmo assim existem dificuldades para custear as ações?

Nós optamos por trabalhar com comunidades e famílias em circunstâncias de vulnerabilidade extrema, então são milhões de desafios todos os dias. Mais de 68% das crianças e adolescentes que a Edisca atende está abaixo da linha da pobreza. Para se ter uma percepção disso, quem está abaixo da linha de pobreza não acessa sequer três refeições por dia. Nada antecede a fome e se fala muito pouco sobre isso. E o nosso povo passa muita fome. Mas quando nem isso está assegurado, imagine quantas outras lacunas existem. A questão da sustentabilidade foi o maior desafio nesses meus quase 28 anos de prática social. Eu me sinto em campanha há 28 anos, há 28 anos que eu peço, e não é fácil viver pedindo, ainda que não seja para mim. E este ano não captamos 20% do nosso projeto Lei Rouanet, que sofreu um desgaste imenso, e a circunstância da crise, outro fato que não é irrelevante. Este ano tivemos que devolver dinheiro de outra lei de incentivo, a Lei Estadual de Mecenato, porque não conseguimos captar 50% do valor.

Como a Edisca tem se preparado para dar sustentabilidade para as suas ações?

A Edisca se relaciona com Prefeitura e Estado, com instituições de financiamento nacionais e internacionais e, de alguns anos pra cá, fazemos apresentações que geram recurso próprio – e isso é muito bom para a dignidade institucional, as pessoas falam muito em dignidade das pessoas, mas existe também a dimensão da dignidade institucional. Desde 2017, estamos na luta para criar um braço de sustentabilidade que por coincidência também se chama Estrelário. Nós já tivemos loja pop up em shopping duas vezes e agora estamos com uma parceria com a C. Rolim Engenharia, que está construindo um prédio em uma localização muito nobre da cidade também com o nome Estrelário e vai doar para a Edisca uma fração da venda de cada apartamento. Está havendo também, por parte da diretoria do grupo, um esforço de conversar com os clientes para fazer doações para a Edisca, além do percentual doado por apartamento. Estamos mantendo outras conversas, com a Grendene, por exemplo, para fazer uma linha com um percentual revertido para a Edisca. Enfim, estamos estruturando ações de geração de receita para diminuir essa dependência da instituição em relação aos financiadores externos.

A quê você atribui essa dificuldade de financiamento?

Essa situação não é algo novo, há pelo menos oito anos percebemos uma debandada do país de organizações internacionais que investiam em programas sociais no Brasil. Essas organizações perceberam que o Brasil tem, sim, graves problemas. No entanto, têm também dentro do próprio país para lidar com seus próprios problemas e passaram a investir na África, obviamente, por ser um continente esquecido pelo resto do planeta; e em áreas de cataclismas. Um outro fenômeno é que as grandes empresas que já tinham na sua cultura empresarial o investimento na área social, passaram a criar seus próprios institutos e fundações e se a auto financiar. Somente por isso dá para imaginar como ficou o terceiro setor no país, por isso que várias organizações sociais fecharam nos últimos anos. E o que eu mais lamento é que a sociedade conhece muito pouco do trabalho e, por conseguinte, não sabe o tamanho do impacto de tantas organizações parando de atuar.

As organizações sociais também dependem em grande parte do trabalho voluntário. Atualmente, a Edisca está aberta para este tipo de trabalho?

Sempre recebemos voluntários, temos verdadeiras pérolas deixadas por voluntários. No entanto, eu acho que a percepção do voluntariado no Brasil ainda não é precisa. Não se pode fazer trabalho voluntário em momentos de depressão, por exemplo. Não se pode ser voluntário por nenhuma outra razão que não seja a vontade de servir. Acho também que o trabalho voluntário precisa ter começo, meio e fim, para que fique muito claro para o voluntário e para a instituição qual foi o legado deixado ali. Nesse sentido, a gente pensa em trabalhos voluntários de curto e médio prazo e não colocamos nenhuma ação fundante da Edisca na mão de voluntários.

SERVIÇO

Espetáculo: ESTRELÁRIO – EDISCA

Local: Teatro da Edisca – Prof. Antônio Carlos Gomes da Costa

Endereço: Rua Desembargador Feliciano de Ataíde, 2309 – Água Fria

Data: 14, 15 e 16 de março de 2019

Horários: 18h e 20h

Duração: 40 minutos

Ingresso: Uma lata de leite em pó. Troca nos dias das apresentações, na portaria do Teatro EDISCA, a partir de 13h.

Classificação indicativa: Livre

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