Cultura é universal e o seu alcance também deve ser. No entanto, não é esse o panorama de Fortaleza, segundo recente pesquisa sobre consumo e acesso às atividades culturais nas capitais. Diante dessa conjuntura, Tapis Rouge apresenta as conclusões do estudo e análises de especialistas sobre a realidade do segmento, além do olhar de quem produz e quem vive ativamente a Cidade
Onivaldo Neto
onivaldo@ootimista.com.br
Atividades culturais podem ampliar horizontes, construir identidades, estimular o pensamento crítico e trazer senso de pertencimento para quem as consome. Além disso, a garantia de que todos tenham oportunidades iguais de participar da vida cultural de um local, fomenta dinâmicas sociais mais justas, equitativas e prósperas. Apesar dessa constatação, esse cenário ideal ainda não é uma realidade para diversas cidades do Brasil, incluindo Fortaleza, conforme mostra a recente e inédita pesquisa “Cultura nas Capitais”.
Para reverberar e discutir os dados levantados pelo estudo, Tapis Rouge conversou com os especialistas Wendel Medeiros, doutor em Educação, professor universitário e artista visual; e Adriana Helena, mestre e doutora em Ciências da Cultura. A reportagem traz ainda as contribuições da coordenadora geral da Bienal do Livro do Ceará, Maura Isidório, e do influenciador digital João Portela, que debatem a partir de diferentes recortes.
A pesquisa e os dados
Divulgada em fevereiro, “Cultura nas Capitais” se posiciona como a maior pesquisa quantitativa, até então, sobre hábitos culturais nas capitais brasileiras. Realizada pelo JLeiva Cultura & Esporte, o estudo entrevistou presencialmente cerca de 19,5 mil pessoas de todas as capitais do País e do Distrito Federal com idade acima de 16 anos, entre fevereiro e maio de 2024. Os dados obtidos, coletados pelo Datafolha, apresentam um panorama detalhado do acesso à cultura no Brasil, além de lançar luz aos aspectos positivos e negativos do setor.
No que corresponde a Fortaleza, o estudo comparativo revelou que a capital cearense está abaixo da média nacional no acesso e consumo de 12 das 14 atividades culturais sinalizadas na pesquisa. O percentual médio só foi ultrapassado em “Feira de Livros” e “Circo”, com 22% e 15%, respectivamente. No entanto, a diferença entre a porcentagem obtida por Fortaleza nas ocupações e a média nacional não é expressiva, sendo apenas 1% em ambas.
Ainda segundo dados da pesquisa, mesmo estando abaixo da média nacional de 62%, “Livros” é a atividade cultural mais acessada e consumida em Fortaleza, com 56%. Já “Concertos” é a ocupação que registrou a menor porcentagem, sendo consumida por apenas 6% dos fortalezenses ouvidos na pesquisa. Mais um marcador negativo é encontrado em “Locais Históricos”. Com 34%, a opção cultural é a que possui maior disparidade com a média nacional, que registra 45%.
Em relação às capitais do Nordeste, Fortaleza é a única que está acima da média nacional no acesso à “Feira de Livros”, de acordo com a pesquisa. Embora “Livros” seja a opção cultural mais consumida, o resultado obtido pela Cidade na atividade a coloca entre as três piores da região, empatando com Recife no Top3.
Ao mesmo passo, a capital cearense também detém o terceiro pior resultado entre as capitais do Nordeste em relação a “Festas Populares” e “Locais Históricos”, com 34% e 32%, respectivamente. Em “Locais Históricos”, a terra da luz empata com Teresina. Apesar de estar abaixo da média nacional na atividade, o município cearense é o segundo, entre as capitais do Nordeste, com maior porcentagem no acesso a “Bibliotecas”, com 24%. A cidade fica atrás apenas de Natal, que detém 25%.
Outro dado revelado pela pesquisa é que Fortaleza está empatada com Recife e Aracaju no acesso à “Museus”, com 19%. As capitais perdem apenas para João Pessoa, com 21%. Em “Cinema”, a cidade alencarina se destaca com a segunda melhor porcentagem, 42%, empatada com Salvador. Recife detém o melhor percentual, com 46%. Vale destacar ainda que todas as capitais do Nordeste estão abaixo da média nacional apontada pela pesquisa no acesso à “Cinema”. O pior resultado de Fortaleza em comparação às capitais do Nordeste é no consumo de “Shows de Música”. Com 36%, o município fica a frente apenas de São Luís, que registrou 34%.
Salientando a disparidade de gênero, a pesquisa também sugere que o consumo e acesso à cultura realizado por homens em Fortaleza está acima da média nacional em cinco das atividades culturais analisadas, sendo elas: “Jogos eletrônicos”, “Cinema” “Festas populares”, “Bibliotecas” e “Circo”. Por sua vez, o consumo cultural realizado por mulheres fortalezenses ultrapassa a média nacional apenas em uma categoria, “Circo”. A pesquisa também denota que das 14 atividades culturais analisadas, 13 são mais consumidas por homens em Fortaleza. “Dança” é a única ocupação cultural na qual é mais consumida por mulheres do que por homens na Capital.
Quando levado em consideração a raça, o percentual de pessoas brancas que consomem cultura na cidade alencarina está acima da média nacional em sete das atividades culturais investigadas. Já o acesso à cultura em Fortaleza por pessoas negras está acima da média em apenas em quatro das ocupações descritas na pesquisa. No caso do recorte de classes, a porcentagem de pessoas da classe A que consomem ou têm acesso à cultura está acima da média nacional em todas as categorias analisadas pelo estudo, exceto jogos eletrônicos. A porcentagem de pessoas da classe A que tiveram acesso às atividades culturais também é maior do que a porcentagem de pessoas da classe D/E em todas as atividades analisadas pelo estudo.
Análises
Para Adriana Helena os dados expostos pela pesquisa refletem um desafio estrutural no acesso à cultura em Fortaleza. A Vice-Reitora de Extensão e Comunidade Universitária da Universidade de Fortaleza (Unifor) acredita que os índices negativos indicam que há barreiras econômicas, geográficas ou de formação de público, que limitam a participação da população na vida cultural da cidade. “Entre os fatores que apresentam para esse cenário desfavorável, podemos destacar a falta de políticas públicas contínuas de fomento à cultura, a concentração geográfica dos equipamentos culturais em áreas mais centrais e a questão do custo – tanto dos ingressos quanto do transporte até esses locais. Além disso, a formação de público é um processo de longo prazo, que exige investimentos na educação cultural desde a infância”, analisa.

Ainda que as informações oferecidas pela pesquisa deponham contra a cidade, Fortaleza abriga importantes e ativos equipamentos culturais, públicos e privados, como Estação das Artes, Pinacoteca do Ceará, CAIXA Cultural Fortaleza, Cineteatro São Luiz, e muitos outros. Todavia, Adriana pontua que os espaços culturais por si só não bastam para mudar o cenário cultural da capital. “Muitos desses equipamentos ainda enfrentam desafios como a localização centralizada, o que dificulta o acesso a quem mora em bairros periféricos, a falta de divulgação eficaz, que impede parte da população de tomar conhecimento das programações, as barreiras econômicas, já que mesmo eventos gratuitos podem implicar custos indiretos, como transporte e alimentação. Portanto, mais do que oferecer infraestrutura, é preciso pensar estratégias de aproximação com diferentes perfis de público”, destaca.
A função dos equipamentos esbarra ainda em como a cultura tem sido tratada no País, do ponto de vista de projeto de desenvolvimento de uma nação, segundo Wendel Medeiros. Para o artista visual, a reversão dos dados sobre a cidade levantados pela pesquisa só acontecerá se houver um pacto federativo em prol da educação e da cultura. “A situação de formação de público não tem solução simples, pelo contrário, passa por questões sociais, econômicas e educacionais, sendo que, é possível que ainda estejamos sofrendo os impactos pós-pandemia e a sociedade como um todo se reerguendo. (…) se continuarmos em nossa cidade a pensar isoladamente as ações culturais nestes espaços, demoraremos ou perpetuaremos esses índices”, assinala.

Além desses locais de acesso à cultura, a capital cearense também conta com diversas iniciativas gratuitas em seu calendário cultural, como Férias na P.I, shows musicais em datas comemorativas e o Ciclo Carnavalesco, que, neste ano, se destacou por ter acontecido de forma descentralizada, sendo executado em diferentes polos da Cidade. Sobre o assunto, Wendel comenta: “Além de justiça social, cultura é alimento para a alma de uma sociedade e não é preciso ser um expert para notar que qualquer ação cultural descentralizada que aconteça em Fortaleza, vai ter público sim! O Centro Cultural Bom Jardim é um exemplo de braço do Instituto Dragão do Mar, que foi pensado nessa descentralização”, reforça o professor.
Adriana adiciona ainda que os eventos do tipo têm um papel fundamental na valorização da cultura local e no fortalecimento da identidade da Cidade. “Eventos gratuitos e de grande alcance permitem que um público diverso e numeroso tenha contato com manifestações culturais. No entanto, é essencial que essas iniciativas sejam complementadas por políticas de formação pública e descentralização das atividades. Apenas oferecer eventos esporádicos não garante que a população desenvolva o hábito de consumir cultura de forma contínua”, discursa.
O combate à visão elitizada de alguns espaços culturais, onde o público não se sente acolhido ou representado, também se faz necessário para a descentralização da cultura em Fortaleza, segundo a doutora. “Isso reforça um distanciamento entre os equipamentos culturais e as realidades da maioria da população. Para combater essa elitização, é necessário investir na descentralização, na ampliação da programação nos bairros e na inclusão de manifestações culturais populares no circuito oficial. A ampliação dessas ações para bairros mais afastados e escolas pode ser um caminho para melhorar os índices de acesso cultural em Fortaleza”, explica.
Wendel corrobora afirmando ser “preciso escutar as classes representativas das diversas linguagens artísticas, para que a construção de um plano municipal de cultura possa ser iniciado e efetivado conforme a execução anual de seu planejamento. (…) O Salão de Abril, por exemplo, precisa ficar todo encastelado na Casa do Barão de Camocim? Será que toda a sociedade fortalezense conhece esse espaço?” diz.
Os especialistas também discursam sobre os recortes sociais levantados pela pesquisa. Conforme Adriana, a predominância de homens brancos da classe A no consumo cultural em Fortaleza, como sugere os dados do estudo, pode ser explicada principalmente pela questão financeira. “(…) pessoas de classes mais altas têm mais recursos para pagar ingressos e transporte e maior disponibilidade de tempo. Além disso, quem enfrenta jornadas duplas de trabalho ou dificuldades financeiras tende a priorizar outras necessidades. Ainda há a questão da representatividade, já mencionada anteriormente”, pondera.
Esse cenário desigual faz com que se faça mais que necessária a criação de políticas públicas, de acordo com Wendel. “O que se tem de políticas afirmativas, ainda é muito pouco e os dados dessa pesquisa escancaram um fosso social, que também entra no bojo do mau desempenho em termos de acesso aos nossos equipamentos culturais. Quando falo de acesso, não é somente o público ter direitos a ‘comer’, se divertir e sentir a arte” perto dele, mas de se garantir que pretos, pardos, indígenas e quilombolas também possam mostrar sua arte em qualquer linguagem”, acrescenta.
Por fim, para melhorar os índices de acesso à cultura em Fortaleza, a Vice-Reitora recomenda um conjunto de ações estruturais acerca da descentralização das atividades, ações educativas e formação de público, políticas de acessibilidade financeira que visem criar programas de ingressos acessíveis, além de transporte gratuito para eventos culturais e melhor comunicação e divulgação. “Os equipamentos e eventos culturais são essenciais nesse processo, mas precisam ser parte de uma estratégia mais ampla que envolve políticas públicas, educação e inclusão social”, expõe.
O caminho para que o acesso à cultura em Fortaleza alcance mais pessoas está na educação das próximas gerações, afirma Wendel. “(…) de maneira que todos entendam a cultura como uma ‘consciência grupal operosa que desentranha da vida presente os planos para o futuro’, como certa vez disse o escritor Alfredo Bosi em seu livro “Dialética da Colonização”. Educar nossa juventude é chave e isso já está sendo feito em relação à leitura, então, que projetos de disciplinas eletivas possam focar na formação cultural, na economia criativa, para, quem sabe, tornar-se um diferencial de nossa capital”, aponta.
Cultura pelo olhar de quem conduz

Entre os eventos culturais de grande impacto e sucesso, destaca-se a Bienal Internacional do Livro do Ceará. A cada edição, a convenção consolida o Estado como um polo literário de referência nacional, impulsionando a economia local, democratizando o acesso à cultura e promovendo um encontro enriquecedor entre autores e leitores. O prestígio conquistado pelo evento faz coro ao fato de que Fortaleza está acima da média nacional em relação ao consumo e acesso à “Feira de Livros”, conforme revelado pela pesquisa “Cultura nas Capitais”.
“A efervescência da feira de livros [em Fortaleza] é um reflexo das políticas públicas de livro e leitura e como isso é abraçado pela população. A feira de livros é reflexo de inúmeras atividades. Não é a feira isoladamente, mas são várias ações concatenadas que reverberam nessa proliferação das feiras. Então, elas são consequência de várias ações da política pública, e aí tem esse resultado, essa abrangência”, elucida Maura Isidório, coordenadora geral da Bienal.
A coordenadora também discorre que o dado positivo para Fortaleza em relação à atividade cultural é resultado de diversas frentes, além da Bienal do Ceará. “A Bienal é uma das responsáveis por esse resultado, mas não é a única. É preciso entender toda política pública, todo fomento para cadeia produtiva do livro. São editais que trabalham desde a cadeia criativa, a cadeia mediadora e a cadeia produtiva. Então, é preciso falar sobre a retomada das feiras literárias, das feiras que já acontecem regularmente nos espaços culturais, ou seja, nos equipamentos culturais do Estado e do Município”, reflete.
Em paralelo ao dado favorável quanto à “Feira de Livros”, a capital cearense obteve uma porcentagem menor que a média nacional no acesso a “Livros”. Ou seja, a cidade ainda deixa a desejar no acesso e consumo de livros, mesmo abrigando um dos maiores eventos literários do Brasil. Sobre a resolução, Maura destaca que é preciso entender as diferentes formas de acesso a livros em Fortaleza. “A gente precisa entender de que acesso estamos falando. O acesso por meio da aquisição em livrarias ou o acesso ao livro, mas principalmente do acesso à leitura. A pesquisa foca na aquisição. Isso não implica dizer que corresponde ao acesso à leitura. Nós temos várias bibliotecas comunitárias, além das bibliotecas públicas municipal e estadual. E as pessoas também acessam de outros modos, como por meio do empréstimo entre amigos”, elucida.
Com o tema “Construindo vidas por meio das palavras”, a Bienal Internacional do Livro do Ceará edição 2025 acontece de 4 a 13 de abril, no Centro de Eventos do Ceará. Sua última edição, realizada em 2022, reuniu mais de 400 mil visitantes durante 10 dias de programação. A expectativa é que a marca seja ultrapassada na 15ª edição do evento, marcado por palestras, mesas-redondas, oficinas, lançamentos de livros e apresentações artísticas locais, nacionais e internacionais. “O povo cearense sempre se reinventa. Então, essa aproximação com a Bienal, tem esse diferencial de estar sempre buscando acompanhar a política cultural do Estado. A Bienal sempre busca se reinventar, se aproximar, compreender os contextos sociais e a partir daí compôs a sua programação com este olhar”, declara.
Quem consome cultura

O influenciador digital João Portela é certamente um exemplo de fortalezense que vive intensamente a cena cultural da capital cearense. Por meio do seu perfil de indicações culturais no Instagram, o @quefazeremfortaleza, que já acumula mais de 78 mil seguidores, João atua como um agente de promoção do que há de melhor na terra da luz. “Acredito que o que me motivou a criar o meu Instagram foi mostrar para as pessoas da cidade o quanto Fortaleza é massa, o quanto tem programação que a gente pode aproveitar. Muita programação gratuita, museu gratuito, eventos gratuitos, enfim. A gente só precisa ocupar os espaços”, indica.
O tianguaense de nascimento e fortalezense de coração também ressalta o caráter essencial do seu trabalho nas mídias sociais na promoção da cultura e na valorização dos espaços culturais na Cidade. “Eu acredito que enquanto comunicador digital eu tenho um papel importante, porque coloco o meu olhar nesses lugares e as pessoas vão conhecer esses lugares a partir do meu olhar. Nós temos uma função social”, defende.
Um apaixonado declarado pela cidade de Fortaleza, João já coleciona inúmeras vivências com a cena cultural local, mas não sabe dizer ao certo qual é a sua atividade preferida. “Eu sou uma pessoa que respira Fortaleza, sou apaixonado por Fortaleza. Eu vivo tudo que essa cidade nos proporciona. Eu não saberia dizer o que eu mais amo ou qual é a minha atividade cultural preferida, porque gosto de todas. Mas se tivesse que elencar três que eu mais uso e mais frequento, diria shows, teatro e museus. Sou apaixonado por esses segmentos”, compartilha.
Em relação aos resultados obtidos pela cidade na pesquisa sobre hábitos culturais, o influencer reitera que, apesar da cena cultural em Fortaleza ser muito forte, ela ainda sofre com a falta de incentivo e divulgação adequada, além da ausência de sentimento de pertencimento pela população. “(…) acredito que a informação chega e às vezes, quando chega, a pessoa não entende que aquela informação é para ela. Ela não se sente parte da cena. Muitas pessoas acreditam que a arte é algo muito distante, até porque não tem uma educação voltada para a cultura. Tem muitas escolas que não tocam nesta pauta das artes da forma como é para ser”, salienta.
João conclui expressando preocupação com o estado de dois importantes espaços da cidade: o Museu do Ceará e a Praça Almirante Saldanha, importante espaço de encontro situado ao lado do Complexo Dragão do Mar.