Gringo Cardia: O artista que ajudou a abrir as janelas do Brasil ao mundo

Em entrevista exclusiva ao O Otimista, Gringo Cardia fala sobre o desenvolvimento de seus talentos como multiartista, o pioneirismo revolucionário de seus trabalhos e o senso de responsabilidade social inerente ao que produz, seja no design, na curadoria ou na direção artística

Sâmya Mesquita
samya@ootimista.com.br

O pioneirismo vai além de fazer parte de uma vanguarda. É perceber as oportunidades de um tempo e agarrá-las com unhas e dentes enquanto se cria uma identidade, seja individual ou coletiva. Foi assim que o gaúcho naturalizado carioca Gringo Cardia galgou, degrau por degrau, o status de um dos maiores designers do País. Mas ser um dos maiores abarca não só a relevância de suas produções, como a abrangência das diferentes mídias que compõem o repertório do artista.

Gringo é arquiteto por formação, o que lhe garantiu o arcabouço estético necessário para os criativos anos vindouros. E não é pouca coisa! Como designer gráfico, criou mais de 100 capas de disco para álbuns de artistas como Tom Jobim, Marisa Monte, Gilberto Gil, Carlinhos Brown, Chico Buarque, Daniela Mercury, Xuxa, Maria Bethânia, entre outros. Também dirigiu mais de 70 clipes de música e, em 1990, ganhou um prêmio da MTV com o clipe Flores, do grupo de rock Titãs. Isso além de ter dirigido shows dentro e fora do Brasil, em especial do Afroreggae e da Xuxa. Foi curador do Museu da Cruz Vermelha, na Suíça, criou o filme No Arms para a campanha da Anistia Internacional e foi um dos primeiros a falar sobre a temática político-social da Amazônia em Nova York.

O que alguns chamavam nos anos 1980 de “multimídias”, Gringo mostrou no seu legado como essencial à formação artística contemporânea. Ao O Otimista, conta sobre o início de trajetória, em um tempo em que as artes digitais ainda eram um campo inexplorado, destaca contribuições artísticas ao longo dos anos e seus ideais político-sociais, tendo em vista legado construído ao longo do tempo.

O Otimista – Como é olhar para trás e perceber que você é um dos designers de mais impacto cultural no Brasil?
Gringo Cardia – É bom quando você olha para trás que você entende como é importante aprender. Isso é o principal: a gente faz o trabalho e consegue fazer coisas diferentes porque aprende muito com os outros. Desde jovem, trabalhei bastante e sempre tive a curiosidade de enfrentar novos desafios, mesmo sem saber. E isso é muito legal porque o momento em que estou vivendo hoje é mais de ensinar do que de fazer. E estou aprendendo! Hoje em dia, um dos trabalhos principais que eu faço é o de designer e o de curadoria para contar histórias de vários museus do mundo. Então, na verdade, me sinto gratificado porque ajudo a sociedade a entender suas histórias. São histórias que contam o legado de muita gente. E foi o design que me proporcionou isso, a ressignificar essas novas linguagens no século XXI.

O Otimista – De todos os vários trabalhos que você realizou, qual mais te orgulha?
Gringo Cardia – Tenho tanta coisa que me orgulho… Fui parceiro de vários artistas da música e do teatro e ajudei a traduzir esses trabalhos, essas pessoas. Fui tradutor visual de vários artistas. É tanta variedade de trabalhos em vários cantos que eleger um é bem difícil. Mas um dos trabalhos mais importantes de longa duração é o trabalho com a Deborah Colker. É uma parceria criativa de mais de 30 anos. Já foram para o mundo inteiro [com o Cirque du Soleil]. É um trabalho muito gratificante: crio o visual, ela cria a dança; é bem profundo. E nós já ganhamos prêmios. Então, acho que aí é a missão da gente: sempre divulgar a nossa cultura. Também tenho maior orgulho dos meus museus: o Museu da Cruz Vermelha na Suíça, que conta a história de como foi criada e qual sentido de alguém ajudar os outros. O mundo vive um momento em que é importante ter solidariedade, olhar para o outro. E ali é o começo de tudo. Daí, na Bahia, tem vários, mas tenho um carinho especial com Jorge Amado, que foi quem me chamou para a Bahia. Fui chamado pela energia dele para fazer a história dele na casa em que ele viveu. E descobri em várias outras histórias da Bahia, histórias do povo preto, da música, que são fundamentais para você entender o Brasil. A história da música da Bahia é o início da música brasileira. Alguns dos trabalhos que gosto são as minhas capas de disco da Maria Betânia, do Chico Buarque, do Carlinhos [Brown], da Marisa Morte, da Daniela Mercury, da Ivete Sangalo…

O Otimista – Existe o Gringo artista, o Gringo arquiteto, o Gringo designer, o Gringo curador… Como é esse diálogo entre esses vários “Gringos” para formar esse ethos?
Gringo Cardia – No fundo, sou um artista visual. Não tenho nem nome porque engloba tudo. Tive a sorte de estar presente em um momento de grande transformação visual do mundo, que foi a partir do computador. Tudo visual passou a ser importante e muito se perdeu, porque as pessoas deixaram de perceber o sentido e o conteúdo das coisas. Então, acho que o meu trabalho é aprender com os historiadores, com os professores… É filosófico: como passar isso para as pessoas através das imagens? Como passar valores, política de uma maneira mais social, através de uma capa de disco, de um cenário, de uma foto? Um artista hoje, no século XXI, deve trazer esses valores sociais, que são muito frágeis, muito atacados. ‘A beleza vai salvar o mundo’, como disse Dostoievski [escritor russo]. E o papel da gente é mostrar isso, mas sem deixar de mostrar as coisas feias. Mostrar os absurdos que são feitos contra a humanidade, mas ter um olhar positivo, porque o olhar negativo só nos traz para baixo. Uma das minhas maiores lições foi uma escola que eu fundei há 25 anos aqui no Rio de Janeiro, chamada Espetáculo. É uma escola de arte e tecnologia que fundei junto com a Marisa Orth, o Rick Muniz, o Giovani Bianco e a Malu Barreto, para dar oportunidades a jovens das periferias do Rio. A gente fez essa escola sem uma missão. E, apesar de todas as dificuldades financeiras, de arrumar patrocínio, a gente luta muito. E esse é o sentido da vida: para ser um grande artista, você tem que ajudar outras pessoas. Não tem sentido, em um planeta como esse, você viver do ego.

O Otimista – Flores (1989), dos Titãs, foi um clipe inovador e até premiado lá fora. De onde veio a ideia daquelas sobreposições, mesmo em uma época com tantas limitações na computação gráfica?
Gringo Cardia – Estava começando o vídeo, ali. Quando me chamaram para fazer aquele clipe, eu fiz todo o gráfico, todo recortado. Foi quando a MTV chegou aqui no Brasil. E a gente ganhou lá em Los Angeles esse prêmio [de Melhor Clipe] em 1990. Foi no início dessa explosão visual. Então, ainda estava aprendendo. Fiquei penando para fazer aquilo, mas consegui. Eu ficava do lado das pessoas que sabiam fazer. Aí, tecnicamente, falei que era assim, o que era ‘assado’ e fui aprendendo de uma maneira autodidata. Naquela época, a gente nem sabia fazer direito. Mas foi inovador porque era um clipe feito para o ‘Fantástico’ [da TV Globo]. Queria mostrar que era capaz de fazer uma coisa diferente. E o papel do artista é isso: mostrar as coisas de uma maneira diferente. Os artistas são comunicadores. Comunicam através da imagem.

O Otimista – A exposição Amazônia Brasil mostrou um Brasil diferente e necessário lá fora. E diante dos últimos acontecimentos climáticos recentes, você faria de novo uma exposição como essa?
Gringo Cardia – Nós fizemos no início dos anos 2000 e foi para o mundo inteiro. A gente estava mostrando experiências positivas na Amazônia. E foi super bacana. Mas, depois disso, a gente viu um ataque absurdo contra a Amazônia, contra o planeta. Com certeza, o mundo precisa ficar ligado com o nosso meio ambiente. Metade dele é floresta, que está ligado aos povos originários, que cuidam da floresta e denunciam invasões clandestinas. Acho fundamental a gente ter esse cuidado com a Amazônia. Naquela exposição, fomos para São Paulo, Paris, Tóquio, Nova York, e as pessoas ficavam muito impressionadas. A gente precisa mostrar que essa preservação só vai se sustentar se tivermos apoio do mundo inteiro. É um dos trabalhos que eu tenho mais orgulho.

O Otimista – A Estética da Periferia mostra muito do seu trabalho nas favelas. O quanto essa experiência te acrescentou e enriqueceu socialmente?
Gringo Cardia – Essa história de periferia, que hoje em dia, graças a Deus, está na moda, a gente começou lá atrás, Heloísa Buarque de Hollanda [escritora] e eu, ao mostrar a arte que está na periferia. Na primeira vez que a gente trouxe os trabalhos da periferia, fizemos uma curadoria e colocamos em um museu importante da cidade. E foi um estouro de público! Então, essa luta da identidade negra e das periferias é uma luta que a gente já tem desde que fundei a escola e que Heloísa e eu fizemos essa exposição de estética da periferia. A partir dessa exposição, ela criou a Universidade das Quebradas, que é uma universidade sem professores. Os professores são os alunos. Por causa disso, Heloísa foi até expulsa da UFRJ, mas ela achou ótimo [risos]. E hoje em dia, ela é da Academia Brasileira de Letras, uma das maiores intelectuais do Brasil. Então, a gente vê que é uma luta o tempo todo. Não só para o povo negro como dos povos indígenas.

O Otimista – Quais as maiores dificuldades e alegrias em ser curador de museus?
Gringo Cardia – No trabalho de curador, o que mais me dá alegria é trazer visibilidade para a invisibilidade, entende? Isso é a melhor coisa! Mostrar uma coisa linda, incrível, emocionante com uma pessoa simples, da rua, que faz uma coisa linda. Aí você põe isso no museu e falam: ‘Nossa, essa pessoa tem uma sabedoria incrível’. E isso ajuda as pessoas a entenderem que têm que escutar umas às outras, a contemplar a verdade. O papel da gente é trazer, de alguma maneira, o encantamento para que as pessoas voltem a contemplar as coisas e não fiquem só ‘zapeando’ coisas.

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