Premiado na literatura, Odorico Leal fala das vertentes onde atua, das inspirações e do impacto da arte através das gerações

Reconhecido primeiro lá fora, o piauiense Odorico Leal viu suas canções atravessarem o Atlântico e caírem no gosto de uma geração, integrando a trilha sonora da série britânica Skins. Agora, com Nostalgias Canibais, estreia premiada na ficção, reafirma seu nome na literatura brasileira. Conheça o nordestino que tem a escrita como ofício, a música como legado e a arte de narrar sobre seu tempo

Candice Machado 

candice@ootimista.com.br

A arte sempre esteve lá. Nas composições do pai, na voz da mãe, na herança da tuba e da viola de seresta. O gosto pela leitura chegou pelos quadrinhos. Não havia livraria em Picos, no profundo do Piauí. Apenas uma banca de revistas na rodoviária. Ali, Odorico Leal cresceu ouvindo música, aprendendo histórias. Começou cedo a conversar com o violão.

Aos 14 anos, já em Fortaleza, conheceu Arthur Conan Doyle e seu famoso detetive. A literatura fincou raízes. Hoje, Odorico é doutor em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor, crítico literário, tradutor e autor de Nostalgias Canibais, sua estreia na ficção, obra publicada pela Editora  Âyiné, amplamente elogiada pela crítica e recentemente premiada como Melhor Livro de Contos de 2024, pela Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA). Desenraizado de sua terra, Leal vê o mundo a partir de um Nordeste que teima em habitá-lo. Com The Amazing Broken Man, as cançoes dele cruzaram o Atlântico, caíram no gosto dos jovens britânicos e entraram na trilha de Skins, série britânica que capturou o espírito de uma geração. Em Nostalgias Canibais, o escritor conduz o leitor por narrativas que transitam entre o realismo e o fantástico, o passado e o presente, o íntimo e o coletivo.

Nesta entrevista, Odorico nos guia pelas pontes que a arte constrói entre gerações. Fala sobre música, literatura e analisa as transformações sociais que vêm abalando paradigmas — e, inevitavelmente, o mercado artístico.

Tapis Rouge – Nostalgias Canibais foi amplamente elogiado pela crítica e premiado como Melhor Livro de Contos pela Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA). Como tem sido a recepção do público?  

Odorico Leal – A recepção, tanto por parte do público quanto da crítica, foi a melhor possível, ainda mais considerando que é um livro de estreia e um livro de contos, não um romance. Eu torcia por uma ou duas boas resenhas e talvez um sinal verde para um próximo livro. Não imaginava ganhar um prêmio da APCA.

Tapis Rouge – Pode falar também sobre inspiração e processo criativo da obra? Como você enxerga o papel da literatura em discutir e refletir as contradições da sociedade contemporânea?

Odorico – Por muito tempo era comum desancar a ideia de inspiração na arte. Mas tudo depende de como se define inspiração. Se é a intervenção de uma força arrebatadora que transforma o fazer artístico numa espécie de psicografia, não é o caso. Mas, se pensamos em inspiração como o surgimento súbito de pistas e conexões que indicam uma possibilidade imaginativa fecunda — uma porta que se abre para a Fantasia —, aí, sim. Aqui também existe um elemento misterioso, que tem a ver, claro, com atividades mentais que não compreendemos plenamente. Mesmo agora: estou escrevendo estas palavras, e as ideias vão me aparecendo sem que eu saiba bem como. Eu não pensei: quero pensar exatamente isto. O pensamento simplesmente brota, continuamente. É como se tivesse alguém me escrevendo. Acho que voltei à ideia de psicografia. Desisto: tudo é psicografia. Quanto às contradições sociais e a literatura, acho que, se você descrever com alguma fidelidade um passeio ao Iguatemi ou à padaria da esquina, você vai fatalmente refletir as contradições da sociedade contemporânea. Estão por toda parte, como aquelas poças de lama que te obrigam a enfiar o pé na água suja, não havendo outro caminho. Para mim o desafio é encontrar formas sutis e inesperadas de refletir essas contradições, que muitas vezes não são sutis nem inesperadas, são, pelo contrário, terrivelmente óbvias. Buscar, enfim, uma forma criativa de cair na poça de lama.  

Tapis Rouge – Você acredita que a arte pode ser uma forma de conectar gerações e transmitir valores? Como essa ideia se reflete na sua relação com seus filhos?

Odorico – É o que a arte faz desde sempre: conectar gerações. Desde as pinturas rupestres. É a grande luta dos bons corações da humanidade: criar pontes, que estão sempre sendo devastadas, seja por desastres naturais ou pela própria ação humana. Aliás, sendo os humanos parte do mundo natural, podemos dizer que a ação humana é o grande desastre natural do mundo. Somos desastres naturais pensantes. Mas não é esse pessimismo que quero transmitir aos meus filhos. Nem foi essa a influência artística do meu pai na minha obra. Meu pai, o cantor e compositor piauiense Odorico Carvalho, é um exímio mestre-de-obras de pontes. Eu sou um ajudante preguiçoso.  

Tapis Rouge – Como enxerga o papel da cultura nordestina e cearense em sua obra? Existe algum traço dessa herança que você considera indispensável no que cria?

Odorico – Nasci no sertão do Piauí. E de lá fui saindo, sempre para mais longe. O desenraizamento é o meu sertão. É o que mais me sobrou do sertão. E é também uma forma de sempre estar no sertão. É de lá que vejo o mundo, mesmo quando meus contos se passam em Fortaleza ou em São Paulo.

Tapis Rouge – Poderia falar um pouco sobre o seu projeto The Amazing Broken Man? Quais canções desse projeto foram incluídas na trilha sonora de Skins, e como surgiu o convite para participar da série? Como foi a experiência de ver sua música associada a uma produção internacional tão marcante?

Odorico – No começo do milênio havia em Fortaleza uma cena forte do que começava a se chamar de indie rock, com bandas como Belasco, 69% Love, Telerama e Dead Leaves. O inferninho querido onde essas e muitas outras bandas se apresentavam era o extinto Noise3D, rente ao extinto Hey Ho. Participei disso. Em 2009, gravei algumas canções em estilo folk-indiedeprê-quase-emo, no estúdio caseiro do Wesdley Vasconcelos, baixista da banda EletroCactus. Pus no extinto MySpace — a palavra mais recorrente aqui parece ser extinto —, e um jovem produtor britânico que varava madrugadas ouvindo música online topou com elas e pediu duas: Near Town e New Year Son. As duas podem ser ouvidas no Spotify do The Amazing Broken Man, meu heterônimo indie. Acho que essas músicas deviam capturar alguma coisa do espírito da juventude da época, já que caíram no gosto de adolescentes britânicos. Dois ou três anos atrás lancei um EP chamado “Blue”, com canções em português, entre elas “Ipê Azul” e “Ingazeira”. Também estão no Spotify.

Tapis Rouge – Como alguém que escreve e canta sobre o seu tempo, quais mudanças mais significativas no comportamento e nos dilemas sociais você percebe ao longo desses anos?

Odorico Leal – Um aspecto que ainda me espanta: no começo do milênio, o que hoje se chama por aí de cultura “redpill” ou simplesmente extrema-direita estava restrita a certos ermos pouco visitados da Internet. Hoje, ela está no centro do poder do mundo, encarnada em tech-bilionários que controlam nossos meios de comunicação e nossa privacidade virtual. E agora estamos adentrando a era das inteligências artificiais, o que, nesse cenário, não é uma boa notícia.  

Tapis Rouge – Nos últimos anos, o debate em torno das relações de gênero se aprofundou, impulsionado pela coragem de mulheres que decidiram quebrar o silêncio sobre situações antes normalizadas. Casos como o Me Too, que trouxe à tona denúncias de abuso em Hollywood, o recente escândalo envolvendo P. Diddy, as acusações contra Neil Gaiman e o relato de Vanessa Barbara no podcast Rádio Novelo, que revelou a misoginia no mundo literário brasileiro, mostram como essas discussões vêm desafiando estruturas de poder e comportamentos históricos. Na sua visão, qual é o impacto desses movimentos no mercado das artes e na sociedade?

Odorico – É o impacto de uma verdadeira mudança de paradigma, ainda em andamento, ainda se estabelecendo em meio a tensões e resistências. No caso específico do mercado literário, basta ver a mudança de perfil não só dos vencedores dos principais prêmios literários do País nos últimos cinco anos, como também dos autores com maior alcance de público.  

Tapis Rouge – Em contrapartida, o Brasil está se unindo e vibrando com o sucesso de uma artista brasileira. Fernanda Torres ganhou o Globo de Ouro de melhor atriz em filme dramático, por “Ainda Estou Aqui”, e concorre também ao Oscar de melhor atriz. Como avalia esse fenômeno?

Odorico – Não diria que o País está se unindo. Uma parte do país está vibrando com o feito da Fernanda Torres, outra parte olha tudo com despeito. Acho que o Brasil nunca mais vai se unir para nada. Minto. O Brasil se uniu contra os celulares nas escolas. Foi a única pauta nos últimos anos que não gerou uma polarização. Todos concordaram que o celular é um mal. Talvez porque todos, à direita e à esquerda, sintam a mente um pouco em frangalhos graças ao celular. Quanto à Fernanda Torres, ela é não apenas uma atriz magistral, como uma grande escritora. Leio regularmente seus artigos na Folha de São Paulo. Ano passado, por ocasião da morte de Ziraldo, ela escreveu um artigo intitulado ‘“Ziraldo e a alegria da resistência”, que todos deveríamos ler, pela beleza da escrita e pela força da mensagem.  

Tapis Rouge – Acredita que a arte é capaz de influenciar mudanças sociais significativas ou apenas reflete o que já está acontecendo?

Odorico – Os artistas estão no mundo, são envoltos e soprados pelo mundo, derrubados e levantados pelo mundo. Então eles influenciam tanto quanto são influenciados. São microorganismos que têm algum efeito na saúde ou na doença social. Mas, como não podem estar fora do mundo, não têm muito controle sobre isso. A autonomia artística é uma ilusão. Sempre há uma dimensão da obra que escapa ao próprio artista. Por isso publicar envolve sempre algum risco de se expor ao ridículo. O que acontece também nesta entrevista.  

Tapis Rouge – Você nasceu em Picos, no Piauí, onde viveu até os 13 anos. Depois, mudou-se para Fortaleza, onde graduou-se em Letras pela Universidade Federal do Ceará. Morou em Belo Horizonte e, atualmente, vive em São Paulo. O que motivou essas mudanças e qual o impacto delas na sua vida e no seu trabalho?

Odorico – “Mudanças” é o título de uma das músicas mais bonitas do meu pai, Odorico Carvalho. É uma parceria com o paraibano Jorge Lima, presente no compacto de mesmo nome que meu pai lançou em 1983, com capa da artista plástica piauiense Naza. Uma música belíssima. Pode ser ouvida no Spotify. Minhas mudanças se deram pelas razões de sempre. Estudar, trabalhar, buscar um lugar ao sol. Uma marquise na chuva. Vida de migrante.  

Tapis Rouge – Hoje, você é músico, tradutor e escritor. Como essas atividades se tornaram parte de sua vida? O que o levou a escolher cada uma delas?

Odorico – A música, claro, veio pelo meu pai. Mas meu bisavô materno tocava tuba na banda da prefeitura de Picos. Um tio-avô, segundo relatos, era bom violeiro de seresta. E minha mãe canta lindamente, com muita alma. Desde cedo frequentei o violão. Não era preciso que me mandassem ir conversar com o violão. Eu ia lá puxar conversa, atrapalhar seu silêncio. Coisa que faço até hoje. Mas quem tem talento mesmo para o violão é meu irmão, Marcos Carvalho, que é um exímio violonista clássico. O gosto pela leitura me chegou por revistas em quadrinhos na infância. Não havia livraria em Picos. Havia uma banca de revistas na rodoviária, onde chegavam os melhores lançamentos, e de tempos em tempos eu convencia meu pai ou minha mãe a me levarem lá. Isso era 1994, 1995. Havia outra na praça central, que eu frequentava mais assiduamente. Pelos 14 anos, já em Fortaleza, li Um Estudo em Vermelho e O Cão dos Baskerville, de Arthur Conan Doyle, e até hoje me lembro do impacto dessas leituras na minha imaginação. Era 1997. A partir daí comecei a me tornar um leitor de literatura. Pelos dezesseis comecei a escrever poemas e ficções. Mas só vim a publicar um livro em 2024. A tradução é um meio de sobrevivência que eu adoraria exercer apenas como arte.

Tapis Rouge – Como equilibra essas expressões artísticas? Existe uma que considera predominante?

Odorico – Traduzo como ofício regularmente. A música é sazonal. De tempos em tempos me vem inspiração — psicografia — para novas canções. Mas é mais um hobby do que propriamente uma carreira. Não faço shows, gravo músicas domesticamente. Com a publicação de Nostalgias Canibais, a literatura agora se tornou uma carreira de fato. Vamos ver se dura.  

Tapis Rouge – Você já verteu para o português obras de renomados autores internacionais. Algum trabalho que foi especialmente marcante para você? Por quê?

Odorico – O Retorno, de Hisham Matar. Uma obra-prima que me comoveu diversas vezes durante a tradução. É um livro sobre o desaparecimento de um corpo. Sobre a persistência desse desaparecimento. A continuidade — o corpo que continua desaparecido. Esse desaparecimento é uma vala para onde toda a vida do narrador escorre. É difícil sair do desaparecimento. Talvez impossível. E isso Hisham Matar comunica como poucos. E, como em “Ainda Estou Aqui”, é um corpo que desaparece numa ditadura. Um corpo que se desfez em algum lugar, talvez soprado num deserto, numa praia do Mediterrâneo, entre a Itália e a Líbia. Só de pensar em O Retorno sinto arrepios.

Tapis Rouge – Por fim, quais são seus próximos passos como artista? Há novos projetos literários, musicais ou traduções em andamento?

Odorico – Estou escrevendo o que parece ser um romance com leves toques de ficção científica. Tenho 40 laudas até o momento. Ou seja: há um árduo caminho pela frente. Que pode terminar num beco sem saída. Um caminho demorado, ainda mais porque só posso escrever nos parênteses da vida, nos interstícios, aqui e ali. Como diz o poema da Adília Lopes: “Preciso trabalhar para ganhar o meu pão, meu querido Guilherme”. Quanto às traduções, a querida editora Âyiné vai lançar um livro do supracitado Hisham Matar sobre a cidade de Siena. Outro livro belíssimo, que tive o prazer de traduzir e é um desdobramento de O Retorno. De momento, estou trabalhando em um perfil biográfico do grande escritor baiano Euclides Neto.

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