Em um trabalho que une técnica, história e devoção, restauradores realizam um trabalho minucioso com esculturas sacras centenárias, resgatando não apenas a beleza das peças, mas também as memórias cultural e religiosa do Ceará
Sâmya Mesquita
samyamesquita@ootimista.com.br
Em um cenário que poderia ser escrito pelo americano Dan Brown, jovens estudantes de Fortaleza dedicam horas a limpar, reconstruir e revitalizar esculturas sacras que contam histórias de fé e de resistência. A Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho reúne 15 alunos imersos no restauro de cinco peças religiosas das Igrejas Nossa Senhora dos Remédios e Nossa Senhora dos Navegantes. Entre as obras estão imagens de Santa Teresinha, Santa Catarina Labouré, São Francisco das Chagas, Jesus no Horto com o anjo e São João Batista, esta última com mais de 100 anos.
“A escola tem a responsabilidade de fazer a história acontecer. Quando restauramos uma peça, estamos contando a história da nossa gente”, afirma Maninha Morais, gestora executiva da EAOTPS. Ela destaca que a instituição, inaugurada em 2002, não apenas capacita jovens em técnicas de restauro, mas também valoriza o patrimônio, resgatando memórias que poderiam se perder com o tempo. “A Capela de Nossa Senhora dos Navegantes, por exemplo, já teve algumas imagens restauradas por nós. Agora, estamos refazendo esse trabalho, mas com um cuidado adicional: ensinar as pessoas como manusear as obras restauradas”.
O curso

O trabalho faz parte do curso Conservação e Restauração de Bens Patrimoniais Móveis – Esculturas, que começou em fevereiro e tem previsão para ser concluído nesta semana. Sob a supervisão de profissionais como os restauradores Merlin Alves e Carolina Alves, os alunos aprendem métodos que vão desde a prospecção – análise das camadas originais da peça – até a reintegração de partes danificadas, como ornamentos.
“O maior desafio é a reintegração de partes perdidas, como dedos. Precisa ter sensibilidade artística para preservar a estética da obra, mas também conhecimento técnico para manter a integridade histórica e religiosa”, explica Lucas Ramos, responsável pela restauração dos dedos indicador e polegar de São Francisco das Chagas. O estudante, que já atuava como escultor, viu no curso uma oportunidade de ampliar os conhecimentos e contribuir para a preservação da cultura local.
Para Marina Pinheiro, monitora do curso, o trabalho realizado pelos alunos vai além da técnica: “Cada peça tem uma história. Quando descobrimos que Santa Teresinha tinha os olhos azuis, embora estivesse pintada de castanho, foi como resgatar uma parte da identidade dela”, conta. Ela também diz que a sala de restauro é um processo de descoberta histórica e detalha ao Tapis Rouge um causo: “Estamos trabalhando com uma peça chamada Jesus no Horto. Quando a peça chegou, o padre queria restaurar apenas a figura de Jesus, que estava mais danificada. Mas a professora Carol insistiu em trazer também o anjo que compõe a alegoria. Ao analisar o anjo, descobrimos que ele havia perdido o dedo indicador da mão esquerda, que, na narrativa bíblica, aponta para o céu. Esse detalhe é crucial, porque simboliza a ligação divina. O anjo segura um cálice na mão direita, representando a passagem em que Jesus pede a Deus para afastar o cálice do sofrimento. Essa simbologia é muito rica e até ajuda a contar a história para quem não tinha acesso aos textos bíblicos na época”.
Mudando realidades

A EAOTPS, gerida em parceria com o Instituto Dragão do Mar, é a única escola do Nordeste especializada em restauro e conservação de bens patrimoniais. Além dos cursos livres, a instituição oferece oficinas de gravura e artesanato, capacitando jovens, muitos deles em situação de vulnerabilidade social, para atuar no mercado cultural. “Aqui, aprendemos a cuidar de peças que são relevantes para comunidades inteiras”, diz Gabriel Arcelino, estudante e educador museal, que viu no curso a chance de aprimorar seus conhecimentos práticos e contribuir para a preservação da memória cearense.
Além das esculturas sacras, conforme mostrado pelo Tapis Rouge, a entidade atuou no restauro do Cineteatro São Luiz, um dos mais importantes espaços culturais do Estado. E enquanto as esculturas sacras ganham nova vida, mãos talentosas seguem cumprindo o papel de guardiãs da história.