Waldonys: “Vivo feito um passarinho: quando não estou voando, estou cantando”

Música e aventura são uma coisa só para um dos maiores forrozeiros de todos os tempos. O sanfoneiro nos recebe em sua casa após turnê comemorativa de seu aniversário, onde fala sobre sua caminhada, filosofias pessoais e planos para o futuro

Sâmya Mesquita
samya@ootimista.com.br

O bairro da Parquelândia tem na casa de Waldonys um marco simbólico. É de conhecimento entre os moradores daquela região que aquela casa de esquina, com calçada de sanfona e notas musicais, é quase um templo da música. E o que se apresentou a esta repórter, logo nos primeiros minutos de estadia, apenas confirmou o fato de que Euterpe sempre passa por ali. Ao ser recebida por Luciano Moreno, filho de Waldonys e mais novo sanfoneiro profissional da casa, e a dupla de jovens talentos Laís e Luíza, o pequeno ensaio acabou se tornando um show de abertura para as palavras de um dos ícones do forró.

Waldonys iniciou sua carreira ainda adolescente: conheceu o mestre Dominguinhos aos 13 anos e o Rei do Baião Luiz Gonzaga aos 15. De lá para cá, foram décadas de sanfona, canto e composições que buscam ressaltar a tradição do forró raiz. Mas mais do que isso: o músico criou para si uma personalidade própria, altiva e inspiradora, através da sua paixão pela aventura nos céus.

Tornou-se tradição, nos últimos anos, que a festividade de aniversário do músico aconteça sempre nos palcos. E na ocasião de seus 51 anos, Waldonys deu aos fãs a turnê “Causos, cantos e poesias”, unindo-se ao poeta de Bráulio Bessa. Mas mais que chegadas triunfantes e voos na Esquadrilha da Fumaça, a turnê trouxe um ser artista de repertório musical, filosófico e até político multifacetados. Em entrevista ao O Otimista, o Ícaro cearense exibe suas multidões internas e fala sobre sua carreira, os sentimentos que tomam suas músicas e os planos para o futuro.

O Otimista – Qual o sentimento de comemorar 51 anos sendo a maior parte deles totalmente dedicados à música?

Waldonys – O sentimento é de felicidade, né? Na realidade é um misto de sentimentos: gratidão ao público, a Deus, à família, aos amigos, à música por ter assim aberto tantos horizontes para mim. Algumas pessoas não gostam de receber as felicitações pelo dia do aniversário. Eu não: adoro! Eu acho que é para a gente celebrar e comemorar. E virou meio que tradição, porque de uns seis anos para cá eu sempre venho fazendo isso: no meu aniversário, eu passo o dia fazendo o que eu mais gosto, que é tocar, cantar, estar nos palcos da da vida junto com o público. A troca de energia é muito forte. É o meu melhor presente.

O Otimista – E como se manter fiel ao forró por tantas décadas?

Waldonys – É um sacerdócio. É um trabalho de muito tempo. Eu não tive as pretensões de: “Ah, eu tenho que estourar de qualquer jeito! Eu tenho que alcançar o sucesso de qualquer jeito!” Não! Eu sempre gostei de ir na linha do que o público me identifica e que eu goste do que eu esteja fazendo. É muito ruim quando você faz uma coisa só pensando no comercial — é claro que eu tenho que pensar no comercial; eu vivo disso, né? Mas não pode deixar o comercial passar por cima da arte. Eu acho que tem que ter algo mais. A música é divina, o som se propaga no espaço físico e chega ao coração das pessoas. Então é importante que a gente faça uma música que deixe uma marca, uma mensagem, que te faça feliz, que te realize e que seja vendável também, claro. É bom que as pessoas consumam, né? Não sou o dono da verdade, mas você não pode tratar a arte como um produto que você expõe ali na prateleira. Não existe tabela de preço nem licitação para a arte.

O Otimista – “Causos, cantos e poesias” acabou sendo um marco por unir música à poesia de Bráulio Bessa. Como foi essa experiência?

Waldonys – Essa experiência nasceu em uma live durante a pandemia. Bráulio Bessa me chamou naquele momento que estava todo mundo preso, a palavra da moda era lockdown, e a gente estava pensando em ajudar as pessoas porque era um exercício de solidariedade constante. Ele disse: “Waldo, vamos fazer uma live para ajudar Alto Santo?”, que é a terra dele, né? Eu disse: “Claro, na hora, meu amigo”. E ele veio com a ideia de fazer a live com o nome “Forró e poesia”. Foi quando eu cheguei pra ele e disse: “Bráulio, você me permite sugerir um outro nome?” Eu já tinha esse projeto na minha mente. Eu disse “Causos, cantos e poesias”. Primeiro porque quando a gente bota cantos, cabe qualquer música, não só o forró, permitindo que você cante o que quiser. E a gente adiciona um elemento a mais, que são os causos, as histórias pitorescas e engraçadas da dança do dia a dia. Então não fica só música ou só poesia ou só causo. E a live foi um sucesso. Arrecadamos muito mais do que a gente esperava. Aí acendeu a luz: “Poxa, isso, com a gente só interagindo com a câmera, foi desse jeito, imagine em um teatro!” Quando foi neste ano, nos meus 51 [anos de aniversário], chamei o Bráulio para participar. Ele de pronto aceitou e o resultado foi muito legal. O teatro permite que você ouse mais. Aí quis abrir com um texto, ao invés daquelas aberturas hollywoodianas que eu gosto, saltando de paraquedas, fazendo acrobacias, o Jack Bauer cearense [fazendo referência à série estadunidense “24 Horas”], o próprio 007. Começamos com um blackout, eu sozinho no palco, sem a banda, abrindo com um texto de Nietzsche: “Eu sou vários! Há multidões em mim”. E nisso cabem várias interpretações: o público está em mim. E o texto vai se desenrolando: “Há um velho, uma criança, um sábio, um tolo. Você nunca saberá com quem está sentado ou quanto tempo permanecerá com cada um de mim. Entre tantos”, e há um trocadilho aqui, “um dia me descubro”. Então eu entro com um medley com quatro clássicos da música erudita: Bach, Beethoven, Mozart e Vivaldi — tudo de sanfona. Depois vou introduzindo a música popular brasileira, passando por Luiz Gonzaga e dou uma passeada no palco sintetizando o texto de que eu sou vários. Ainda com poesias e histórias engraçadas, porque o cearense tem esse mote.

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(Foto: Nicolás Leiva)

O Otimista – Essas misturas não são novidade para você, que une a música ao paraquedismo e à aviação. Como surgiu o interesse pela aventura?

Waldonys – Engraçado, sabe? Acho que só o Chico Xavier para dizer realmente de onde vem. Eu digo isso porque a parte musical tem uma responsabilidade hereditária forte que vem do meu pai. Ele até participou do show. As três gerações [participaram]. Eu até disse que poucos artistas têm a oportunidade de realizar eu estou realizando, que é colocar o seu pai e o seu filho para tocarem juntos, as três gerações de acordeom. Já a aviação, não. Ninguém da minha família curte. Talvez eu seja a reencarnação de um piloto daqueles da Segunda Guerra. A aviação sempre me inquietou. A primeira vez que eu voei foi ao lado do Seu Luiz Gonzaga, lá na adolescência, quando fomos fazer um show em Iguatu e de lá fomos para Exu [cidade natal do Rei do Baião, em Pernambuco]. E lá eu fui picado pelo vírus do aerococus [sic]. Aquilo nunca mais saiu de mim. Há uma frase que diz: “Uma vez que você tenha experimentado voar, você andará pela terra com seus olhos voltados para o céu, pois lá você esteve e para lá você deseja voltar”. E é desse jeito que vivo, feito um passarinho: quando não estou voando, estou cantando. E, às vezes, estou fazendo as duas coisas. Chega a ser poético, porque a aviação que eu pratico é lúdica. Eu faço da aviação aérea uma arte, desenhando corações de fumaça no céu. É interessante porque você recebe o aceno de um desconhecido, é apontado pelo dedo de uma criança, transforma o impossível em possível, o pesado em leve.

O Otimista – E como essas experiências constroem o músico que você é hoje?

Waldonys – Ajuda bastante porque as duas artes se combinam e se completam. É o casamento perfeito porque, quando eu estou voando, eu estou pensando em música. Lá em cima você esquece dos problemas mundanos e vai lá onde Deus mora e desestressa um pouco, vê um pôr do sol de um ângulo diferente. Eu escuto música! Sai música nos meus ouvidos. E às vezes, no palco tocando, eu estou voando! A sanfona me tira do chão! Consegui perceber isso muito facilmente na gravação do clipe “O Sonho de Ícaro”, uma música de Cláudio Rabelo e Pisca em que eu fiz uma releitura. Quando eu preparei a música, o pessoal da gravadora disse: “Ficou massa o arranjo, vamos lançar!” E eu disse: “Negativo. Só vamos lançar quando eu conseguir um clipe com a Esquadrilha da Fumaça. Eles falaram: “Impossível!” E eu: “Era tudo que eu queria ouvir! Pois eu vou conseguir”. Não foi fácil. Levou algum tempo, eu diria mais de um ano. Insisti, persisti, nunca desisti e consegui. Então o sabor da vitória foi muito degustado, porque esse clipe foi um divisor de águas na minha carreira — assim como outros vários momentos, como conhecer o seu Luiz Gonzaga. E esse clipe com a Esquadrilha da Fumaça, assim como na gravação do meu primeiro DVD em que eu cheguei de paraquedas no teatro rasgando a tela no teatro, saindo do virtual para o real, fez com que eu construísse uma uma ponte de gerações. Porque o meu os meus fãs, antes da aviação, eram os fãs do Sorriso Gonzaga. Mas quando entrou a aviação na minha vida, as mães com os meninos no meio da multidão iam ao camarim falar comigo e diziam: “Meu filho é louco com você! Ele bota a mochilinha nas costas e fica pulando no sofá dizendo que é o Waldonys e a mochila é um paraquedas”. Aquilo deu um estalo. Então eu estou com um público mais maduro e outro bem infantil. Agora eu vou pegar essa fatia aqui do meio. Como? Através das poesias, da música mais sentimental. E assim eu fiz, devagar e sempre, sem pressa.

O Otimista – Você teve contato com os mestres do forró Dominguinhos e Luiz Gonzaga ainda na adolescência. Qual a importância que esse diálogo teve na sua formação, enquanto começava a se profissionalizar como músico?

Waldonys – Isso foi da maior importância na minha vida, porque ter convivido com o Dominguinhos, com o Seu Luiz Gonzaga enriqueceu demais o meu alicerce musical, a minha formação até como ser humano, sempre aprendendo como a gente deve se portar, como a gente deve tratar os outros, como a gente deve tratar o nosso trabalho, como a gente deve tratar o nosso público… Isso tudo eu aprendi muito nessa escola dominguiniana e gonzaguiana, porque eu convivi na minha adolescência. Eu tive uma educação muito bem colocada pela minha família, mas quando eu saí no mundo para tocar, eu agradeço muito a Deus por tê-los colocado na minha vida, porque são dois seres de luz, de muita bagagem musical e de vida. Eu posso dar uma inovada e gravar “O Sonho de Ícaro”, mas não perco o alicerce, a raiz. Eu não esqueço de onde vim.

O Otimista – Você deu uma declaração em 2012 dizendo que o segredo do sucesso é “não prostituir sua música”? Explica para a gente.

Waldonys – Hoje eu falo isso com mais firmeza porque as tentações vêm! Do modismo, da música assim, assado… O que estoura mas também cai rápido, isso é muito voraz! E diga-se de passagem: nesta turnê de shows, eu disse: “Cara, talvez nós sejamos a última geração que pegou o antes e o depois da internet”. Minha filha não sabe o que é isso! Meu filho não sabe o que é uma fita cassete que eu tenho ali guardada. O que é um LP? A gente viu isso! E hoje a gente vê o que? O Spotify, o YouTube. Sou da época que você ia na FM com seu LPzinho. Hoje eu tenho que ter muitos seguidores, viralizar no TikTok… A internet é muito bem-vinda, é uma ferramenta na publicidade, mas também tem um lado ruim e pode virar uma arma. Hoje tem haters, inteligência artificial… Eu tenho uma música que gravei há uns anos, com poesia do João Mattos, e tem uma parte que diz assim: “Eu tenho medo que a máquina nos delete // e o planeta movido a internet é escravo da tecnologia”. Daqui a pouco ninguém morre mais porque você pega a voz do cara que já morreu para compor. Isso não é saudosismo, mas é para a gente ficar alerta, para debater e pensar. Nós saímos de uma pandemia e vivemos uma epidemia de problemas psíquicos. Transtorno de ansiedade generalizada, pânico, depressões… isso se deve à pandemia ou também à internet? Outro dia, conversando com o Marcos Lessa, a gente estava no camarim conversando no WhatsApp, Instagram, não sei o quê. Ele disse: “Tá foda, né Waldonys?” E eu disse: “É, né?” E ele: “Tu já acorda para olhar?” E eu: “Sim!” Parece dependente químico, entendeu? Isso já pode fazer mal para o cérebro, né? Eu não vou mentir que, quando a gente posta um vídeo, causa aquela ansiedade, aquela curiosidade: “Pô, será que as pessoas vão curtir?” Aí você começa a cair nas comparações: “Deixa eu ver esse outro vídeo aqui”, “Esse vídeo comigo saltando deu mais visualização do que a música”. É engraçado, isso.

O Otimista – Você é um músico conhecido por ajudar causas sociais, especialmente de pessoas com câncer. De onde vem essa vontade de contribuir com a sociedade em seus shows? E por que usar a música como veículo de transformação é tão necessário, para você?

Waldonys – Eu li uma vez o professor [e filósofo Mário Sergio] Cortella falando sobre a nossa existência. Ele diz que o certo é que todos nós vamos morrer. Pois bem: mas eu não quero ir. Então só tem um jeito da gente ficar: é ficar nos outros. Como é que você fica nos outros? Sendo importante. Mas ser importante não é ser famoso. Tem muita gente famosa que não é importante e tem muita gente importante para a sua vida e que não é famoso. Por exemplo, nesse momento tem alguém tirando escara de alguém dentro do hospital e que é super importante para aquela pessoa. E não é famosa! Então, o que é ser importante? É você ser importado para dentro do outro. Morrer é ser esquecido. Eu fico pensando: “Poxa, eu construí, eu construí as coisas, eu tenho as coisas materiais, mas quando eu for embora? Qual é o sentido da vida? Aí eu vi também o Papa Francisco [falando que] a lei da natureza é viver para o outro. O céu não brilha pra ele próprio. Os rios não bebem sua própria água. Não que eu vá ser capacho; tudo na vida é um equilíbrio. Mas sempre que eu posso, através da minha arte, eu faço um bem a mim. Eleva o meu espírito. Não gosto quando a coisa fica muito divulgada, mas tem coisas que, como sou um cara público, eu tenho que fazer campanha para as pessoas ajudarem. Na minha cabeça o que importa sou eu com Deus. É uma questão de você e sua consciência. Raul Seixas já dizia: “Na minha consciência é que eu não posso mentir, pois meu travesseiro não me deixa dormir”.

O Otimista – E que conselhos você daria para os músicos que, assim como o Waldonys nos anos 1980, estão começando agora?

Waldonys – Eu digo pra ele: “Meu filho, sabe o que que eu quero musicalmente e pessoalmente? Que você seja feliz seja na música comercial ou não. Faça o que você acredita, o que você ama, o que lhe realiza. Não fique preso a mim. Eu acredito no que eu faço e quero que ele acredite no que ele faz. Não quero que ele seja a minha sombra: quero que ele faça o trabalho dele. As pessoas sempre te perguntam: “Tu tá trabalhando aonde? Tu tá ganhando quanto? Tu tá como? Que carro tu tem? Como é que tu tá?”. Mas nunca te perguntam: “Você está feliz?” O meu avô, quando a gente pedia a benção, ao invés de dizer “Deus te abençoe”, dizia “Deus te faça feliz”. Isso tatuou em mim e, hoje, eu levo para o meu filho. “Papai, eu gosto mais da música assim meio Dogival [Dantas]”. Dorgival é meu amigo. A gente se respeita pra caramba. Digo: “Meu filho, faça o que te faz feliz!” Ele é fanzaço do Dorgival — e eu também. No palco, o artista é uma antena que capta e emana as energias.

O Otimista – Agora, passados 51 anos, quais as novidades para os próximos anos? O que vem por aí?

Waldonys – Minha cabeça fervilha, não para! As algumas são demais, algumas são palpáveis, outras não, umas são realizáveis, outras não… Mas já dizia Gonzaguinha: “Nunca pare de sonhar, fé na vida, fé no homem, fé no que virá”. Então são vários projetos vindo aí no YouTube. Eu vi uma frase muito legal que diz assim: “Para ser velho basta ter idade. Para ser jovem, qualquer idade serve”. Então eu vivo intensamente a minha vida porque já vi muita gente ir embora em um piscar de olhos. Penso: “Cara, Deus te deu o mundo, a vida, os dons, descobre o teu dom e vai ser feliz, vai viver!” Hoje mesmo [na data desta entrevista, na última terça-feira (19)], vindo para cá de um salto de paraquedas, lá em cima eu disse: “A vida não é medida pela quantidade de respirações, mas pelos momentos que você perde o fôlego”. Cuidado com o medo: ele adora roubar sonhos. Não tô dizendo para todo mundo saltar de paraquedas, até porque existe o medo e o respeito. Quando você perde o medo, você aprende a voar. Quando você perde o respeito, você aprende a morrer. E isso de “voar” pode ser levado pra vida.

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